Na madrugada desta quarta-feira, 4 de junho de 2025, faleceu, aos 92 anos, a renomada arqueóloga Niède Guidon, uma das mais influentes cientistas brasileiras do século XX e início do século XXI. A causa da morte não foi divulgada, mas sua partida marca o encerramento de uma trajetória dedicada com veemência à ciência, à cultura e à preservação do patrimônio arqueológico nacional. Sua atuação incansável no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, não apenas trouxe à luz achados que desafiaram paradigmas científicos, como também provocou transformações sociais profundas na região do semiárido brasileiro.
Niède Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933. Graduou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) e, posteriormente, obteve seu doutorado na prestigiosa Universidade de Sorbonne, na França. Desde os anos 1970, concentrou suas atividades na região da Serra da Capivara, onde coordenou extensas pesquisas arqueológicas que viriam a modificar profundamente a compreensão sobre o povoamento das Américas.
O principal legado científico de Guidon foi a contestação da chamada "teoria Clovis", corrente predominante que sustentava que os primeiros seres humanos teriam chegado ao continente americano há cerca de 13 mil anos. As descobertas conduzidas por sua equipe revelaram vestígios de presença humana datados de mais de 50 mil anos, localizados em sítios arqueológicos como o Boqueirão da Pedra Furada. As análises, embora alvo de debates na comunidade científica internacional, contribuíram para a ampliação dos estudos e para o questionamento de consensos até então considerados definitivos.
Além da relevância científica, o trabalho de Niède teve profundo impacto social e ambiental. Em 1979, ela foi cofundadora da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), instituição voltada à pesquisa, à conservação e à divulgação do patrimônio cultural encontrado na região. A fundação também desempenha papel ativo em projetos educacionais, de saúde e geração de renda junto às comunidades locais.
Com o apoio da FUMDHAM e de parcerias internacionais, Niède liderou a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, oficialmente instituído em 1979 e declarado Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1991. O parque abriga mais de 1.200 sítios arqueológicos, muitos com pinturas rupestres em excelente estado de conservação, representando um acervo único da pré-história das Américas.
Contudo, a cientista enfrentou severas dificuldades ao longo de sua trajetória. Denunciou publicamente o abandono do parque por parte do poder público, a escassez de recursos para manutenção e vigilância, e o desinteresse de sucessivos governos em garantir investimentos contínuos em ciência e patrimônio. Apesar dos obstáculos, sua persistência transformou a região em um polo de conhecimento, turismo sustentável e identidade cultural.
Ao longo de sua carreira, Niède Guidon recebeu inúmeras homenagens. Foi agraciada com a Legião de Honra da França, a mais alta distinção civil do país, além de ter sido condecorada com títulos honoris causa por universidades brasileiras e estrangeiras. Em 2021, o Museu da Natureza, idealizado por ela e inaugurado na Serra da Capivara, passou a figurar como um dos centros de ciência mais inovadores da América Latina, com exposições interativas que aliam paleontologia, arqueologia e ecologia.
Em nota oficial divulgada nesta quarta-feira, o Museu da Natureza lamentou profundamente a perda da pesquisadora e exaltou sua atuação como uma força transformadora não apenas na arqueologia, mas na construção da memória e da identidade cultural brasileira. "Niède foi uma visionária. Seu compromisso com o saber e com a justiça social transcendeu fronteiras e inspirou gerações de cientistas e educadores", diz o comunicado.
A morte de Niède Guidon deixa uma lacuna difícil de preencher. Em um país onde a ciência frequentemente é marginalizada, sua vida tornou-se exemplo de coragem, resiliência e convicção. Desafiando interesses econômicos, políticas negligentes e dogmas científicos, ela conseguiu projetar o sertão piauiense no cenário mundial, provando que o Brasil possui não apenas uma das maiores biodiversidades do planeta, mas também um dos mais ricos patrimônios arqueológicos da humanidade.
Seu legado sobrevive nos mais de mil sítios catalogados, nas instituições que ajudou a erguer, nas crianças da região que hoje sonham em ser cientistas e nos debates acadêmicos que continuam a ecoar por universidades ao redor do mundo. Niède Guidon não apenas escavou a história enterrada sob a terra nordestina: ela desenterrou o valor da ciência como instrumento de transformação social e de construção da identidade nacional.